Sensorial e Telúrica, por Rui Afonso Santos
Uma essencialidade sensorial e telúrica, aliada a uma dimensão temporal de memória, caracteriza a pintura de Clotilde Fava.
A estadia em Angola e a memória feliz desse período, marcaram decisivamente o seu imaginário pictórico. Depois, a redescoberta, em Cabo Verde, da vivência de um mundo africano perdido, despoletaram um processo onde à dimensão memorialística acresceu uma vertente fortemente sexualizada.
É uma pintura figurativa, formalmente marcada pela essencialidade do traço nascida do cubismo e, como bem observa Lourdes Féria, revitalizada pela prática dos muralistas mexicanos dos Anos 30. Um mundo de mulheres africanas, de formas redondas e poderosas, rostos e braços potentes e arredondados, seios generosos, ventres por vezes proeminentes, captadas fundamentalmente nos seus trabalhos, de que a linguagem formal é metáfora, e também em escassos lazeres.
Esta vertente figurativa que bebe em Portinari é, de resto, comum à sua geração formada na Escola de Belas-Artes de Lisboa. Tratava-se da reacção natural a um ensino fortemente anquilosado, leccionado por mestres oficiais ou oficializados do Estado Novo que adoptavam um formalismo tingido de uma modernidade academizada que se destinava, fundamentalmente, a formar discípulos como eles afectos à apologia heroicizada de figuras históricas fundadoras do Império, geralmente marinheiros ou militares.
Sobre fundos onde, geralmente, se espelham as cores da terra, tão decisiva na paisagem africana («as cores da terra fértil», como diria o grande Joaquim Rodrigo), emergem os rotos e corpos volumosos destas mulheres, inversamente heroicizadas.
São a apologia da mulher africana que, como é comum naquelas sociedades, dominam o mundo do trabalho: são elas que apanham fruta e calhaus para venda, que tratam da casa e da numerosa prole, que vivem curvadas na apanha ou subjugadas pelo peso dos filhos que carregam amarrados por panos às costas ou junto aos seios, para que as mãos estejam sempre disponíveis para o trabalho, sempre o trabalho... enquanto tantas vezes os homens se adornam narcisicamente, se agrupam e conversam em cavaqueira que chega a durar o dia inteiro.
Na série Angola, certos planos geométricos enquadram as composições: são planos de paredes de casas e de recantos de janela onde as figuras assomam, de muros onde se sentam, de bancas onde vendem os seus produtos, de roupa enfileirada a secar. Brancos ou ocres, rigorosamente ortogonais, tingem-se ocasionalmente de azul, como sucede no recorte contínuo e simétrico das janelas esventradas de vidros do machibombo, onde espreitam mulheres, homens, crianças e galinhas - num contínuo simétrico excepcionalmente arredondado nos extremos superiores.
Excepcionalmente também, esta ortogonalidade planimétrica pode conjugar planos diferentes e bidimensionalmente sobrepostos, como sucede nas pinturas onde avultam mulheres sob peças de roupa estendida, onde se aplicam brancos sobre brancos de herança “manetiana”, ou naquela onde este jogo de formas domina o terço inferior do quadro onde, entre a roupa branca, avulta uma peça de tecido azul, contraste cromático também... ou a simetria pode dominar a composição, como na pintura onde, perfiladas perante uma pequena multidão obscurecida, duas mulheres de mãos e pés proeminentes encenam uma dança que, provavelmente, antecipa um transe ritualista de feitiçaria...
Mas é a linha curva, em definição de corpos femininos poderosamente arredondados, que orienta a composição. À linha que também se arredonda, simétrica, no jogo das pregas dos tecidos que envolvem pernas, joelhos, braços e cabeças, sobrepõe-se a pincelada que define os volumes, dados através dos contrastes de claro-escuro que definem trajes e lenços, e também os fundos, brancos, negros, vermelhos.
As formas redondas estendem-se dos corpos “portinarescos” à definição das frutas que se perfilam sobre muros, aos cestos que as carregam, a certos animais como galinhas, galos, peixes...
Se exceptuarmos as cabras brancas assexualizadas, simbióticos cúmplices, é no mundo animal que se encontra presente o elemento masculino no universo de Clotilde Fava. Essa dualidade é particularmente evidente na série Cabo Verde.
Nesta série, a ortogonalidade do enquadramento anima-se de cores mais vivas e de volumes mais pronunciados. São pinceladas sobrepostas, em tons de branco, amarelos e ocres, mas, agora, animadas de azuis e vermelhos intensos, que se mesclam por vezes, ou se diluem em zonas de bandas paralelas, progressivamente desvanecidas. Estes planos definem de novo janelas, paredes, muretes que, como molduras, enquadram os rostos das negras ou sustêm os seus corpos.
Nalgumas pinturas desta série, porém, as mulheres recortam-se sobre fundos brancos, inteiramente monocromáticos. Num dos casos até, registo mais linear de menina vestida de branco, a cor cinge-se apenas ao negro da pele... mas ela avulta ainda nas tonalidades dos lenços de cabeça, dos panos de vestir, dos alguidares à cabeça, das fiadas de ananases e dos peixes para venda.
Singulares são estes peixes. Num mundo dominado por mulheres, eles são o óbvio símbolo do elemento masculino, aqui dominado. Ele ressurge na figura dos galos agressivos de crista eriçada e língua saliente que, também dominados, pendem desamparados dos braços de uma mulher que certamente se prepara para os degolar... ou que, desafiadores, se metamorfoseiam em criaturas híbridas, antropomorfizadas, de longas patas monstruosas e agressivas, tal como o seu cantar que se adivinha, perante a indiferença da mulher que os observa.
Os peixes, porém, são mais reveladores, Eles metamorfoseiam-se também, eriçam-se de espinhas e dentes espectaculares, adquirem uma configuração fantástica que os aproxima da fauna marinha dos tempos primordiais, e que ainda hoje subsiste nas profundezas. E, num tríptico de peixeiras, eles cedem, sufocados, expostos sobre a banca da venda, os olhos desmesuradamente salientes e as línguas enormes e vermelhas, pendentes e expostas.
Quando Clotilde Fava pinta as festas de Cabo-Verde, os homens surgem mascarados e novamente metamorfoseados. Em composições assimétricas, onde os vermelhos, amarelos e azuis se realçam, eles são caretos monstruosos com chifres e dentes, ou, mais ainda, galos, bodes, cães e gatos inofensivos, a máscara evidenciada pelo fio que a cinje à cabeça, perfilados sob os frisos das mulheres omnipresentes.
Noutra série de Clotilde Fava, esse desafio entre os sexos é mais evidenciado. Os galos vermelhos são antropomorfizados, de olhar esgazeado, com longas patas como braços, ou corpos verdadeiramente humanizados, parecendo manifestar uma agressividade impotente. O mesmo se passa com os peixes que espreitam das bancas e alguidares, dotados de longas guelras vermelhas e de mãos que, em vão, buscam uma impossível salvação.
São criaturas masculinas híbridas que, em certos casos, adquirem uma vertente mítica monstruosa, metamorfoseados em seres alados inutilmente agressivos, peixes com asas ou homenzinhos com corpos de aves, como Bosch outrora o fez para ilustrar visualmente o pecado e as tentações dos santos.
Este confronto entre os sexos é mais explicitado nas cenas da intimidade amorosa. O homem é agora um gato lúbrico vestido de camisola de alças, abraçando uma mulher feliz pelo enlace, cão sedutor de uma dupla de mulheres, ou macaco de olhar singularmente mais doce e inofensivo.
Na série dos Oceanos, porém, o homem parece predominar. Ele metamorfoseia-se em peixe agressivo das profundezas, eriçado de espinhos e dentes, que avança ameaçador para o primeiro plano, ou que procura devorar um seu parceiro.
O recurso à metamorfose é aqui expandido. Novamente os peixes se antropomorfizam em criaturas bizarras, dotadas de mãos e rostos humanóides, que se amontoam de guelras e braços salientes ou se envolvem em dança sexual - como António Pedro o fez no seu quadro Sabbat-Dança de Roda -, ou, ainda, se enlaçam circularmente num abraço de bocas antropofágico.
O homem pode também ser um peixe vermicular que emerge verticalmente e expele um jacto de água, ou humanóide das profundidades com a cabeça transfigurada numa série de tentáculos de polvo.
Quanto à mulher ela é, nesta série, inevitavelmente sereia, criatura mítica dos abismos de seios volumosos mas de rostos estranhamente bizarros, africanizados, máscaras de uma sensualidade paradoxalmente diluída em relação à sua afirmação primordial e mítica.
Quando o acto sexual acontece, estes peixes transformam-se, por sua vez, em aves - gaivotas ou galináceos que se seduzem e copulam, alheios à lógica natural dos elementos... transfigurando-se, até, em batráquios, já não sabemos se copulando, se lutando.
Mas a série mais sexualizada de Clotilde Fava é a das Flores. Georgia O`Keefe e Robert Mapplethorpe usaram, através do recurso à pintura e à fotografia respectivamente, a flor como metáfora da genitalidade feminina ou masculina. Tal como eles, Clotilde Fava recorre a flores como o antúrio, o hibisco ou o jarro como metáfora da sexualidade.
Nesta série, a paleta inflama-se acertadamente de cor. Os vermelhos, os azuis e, ocasionalmente, os verdes explodem em tonalidades puras e vibrantes No mundo de mulheres de Clotilde Fava é, evidentemente, o gineceu que predomina. São as formas enormes das pétalas que configuram a composição floral, que destacam o luxuriante hibisco de estames diluídos, ou o enorme antúrio de sugestão mais fálica. Depois, sistematicamente, a pintora realiza exercícios de aproximação e ampliação. São já flores que, progressivamente, se metamorfoseiam vulvarmente e que, em close-up cada vez mais acentuado, se assemelham à genitália feminina.
Num dos casos, a composição é centralizada pelo gineceu, em redor do qual se dispõem os estames, vistos de cima, em plongée. Depois, são as formas cada vez mais ampliadas das flores em cores explosivas, tão macro-ampliadas que atingem o paroxismo da não figuração.Aqui e ali, parecem reconhecer-se fragmentos de uma Strelitzia, depois revela-se um biomorfismo crescente, primeiro ainda estruturado por linhas paralelas que estruturam a composição de flores cada vez menos discerníveis, depois composições de formas vermiculares, e cada vez mais puramente pictórico, num exacerbamento que se socorre quase em exclusivo da cor explosiva e da pincelada vibrante.
E, até aqui, estranhas metamorfoses ocorrem: por vezes, os fragmentos ampliados das flores lembram insectos predadores, senão até criaturas alienígenas, inquietantes, provavelmente, masculinas.
Através do exercício da memória (e que a série Paris ilustra particularmente) e de um imaginário centrado na mulher africana, Clotilde Fava exprime uma sensibilidade essencialmente telúrica e genésica, raramente conhecida entre nós na produção plástica no feminino.