Memórias do Olhar, por Lourdes Féria
Recortada na luz aquosa do atelier, vai vencendo com movimentos precisos de mão a brancura da tela que começa a adquirir formas e cores, a ter algum impacto visual. É como se ganhasse uma força anímica, como se quisesse contar qualquer coisa. Memórias e vivências povoam os quadros numa linha de continuidade que remonta aos meados dos anos 90. Pinturas onde sobressai uma ideia fulcral ligada aos afectos africanos, um misto de passado e de presente atravessado pela saudade. O ciclo ainda não se fechou. Os dois cavaletes, as tintas, os panos manchados, os pincéis, a cadeira desenhada por Daciano Costa, as fotografias dos netos, fazem parte daquele espaço um tanto caótico onde gere confrontos entre as divagações geográficas e a banalidade do quotidiano, entre a fantasia e a realidade que o olhar reconhece. Agora, voltou ao ponto de partida para mostrar um conjunto de obras escolhidas que sinaliza a última década do seu trabalho. Não lhe chamemos retrospectiva, trata-se antes de uma exposição antológica acompanhada do lançamento de um livro. Foi no Museu da Água que fez a primeira exposição digna de nota depois do regresso de Angola. Sob o ponto de vista de alguém que desejou captar o local vivido e prendê-lo no lance pictórico. É isso.
No princípio, muito no princípio, Clotilde Fava tinha o rio Tejo no fio do horizonte e os pregões das varinas no ouvido. Lisboa viu-a nascer em 1941, nos tempos difíceis da Segunda Guerra Mundial que veio agravar a já precária situação económica da família. Filha de Palmira da Costa Pinto e do escultor Armando Mesquita que, de longe em longe, lá ia conseguindo umas encomendas do "Estado Novo", lembra-se vagamente de morar na Avenida João XXI, ao lado de uma fábrica de cerâmica entretanto desaparecida. Aos quatro anos perdeu a mãe e, ultrapassado o luto, o pai voltou a casar com uma alentejana de Odemira que cuida dela com todo o desvelo, contrariando assim a imagem da madrasta malvada dos contos infantis. "Tive uma infância muito feliz", afirma. Sacavém ocupa na sua biografia um lugar especial. Os anos em que morou num palacete do século XVII, na Quinta das Penicheiras, foram decisivos na formação da sua personalidade. "Um dia ainda vou pintar as recordações dessa época", garante. Da época em que, menina de tranças e laçarotes de organdi, se rendeu aos encantos de uma galinha que a seguia por todo lado e que adorava o som da guitarra. "Saltava para o joelho do meu pai que tocava de perna trocada e ficava ali quietinha, a escutar os seus arrebatamentos fadistas". Chorou imenso quando a querida galinha, de nome Fly, não resistiu à epidemia que se propagou no reino dos galináceos. Também a partida não se sabe para onde do cão Lis, um curioso exemplar de pelagem preta e sobrancelhas castanhas, lhe cortou o coração.
"Se calhar, meteu-se numa carruagem do comboio e foi sentado até Lisboa", consolava-a o pai que era um excelente contador de histórias e lhe incutiu o gosto pelas artes. A pequena Clotilde, olhos abertos de espanto, acreditava. Tinha seis anos e uma imaginação fértil. Ao cair da tarde, assistia da janela de guilhotina, empoleirada no banco de pedra, ao desfile do rebanho de ovelhas, animais fofos e dóceis que se tornaram para ela uma obsessão. Até que, na santa ingenuidade de criança, tentou negociar com o pastor a compra da ovelha mais bonita, aquela que se interpunha no trajecto do olhar, remetendo as outras para a total invisibilidade. "Ofereci-lhe um tostão, o único dinheiro de que dispunha", adianta. Conservou ainda na memória a belíssima imagem de um cavalo branco a correr, em liberdade. Guardou o fascínio da infância, uma espécie de película impressionável, o que nela ficou registado marcou-a profundamente. Será que a felicidade existe mesmo? Com o avançar da idade, percebemos que é algo de muito delicado e indefinível e que corresponde a momentos fulgurantes. Ao longo do seu percurso, ela foi tendo os seus.
Desde cedo, descobriu o prazer dos traços e das cores. Com uma régua dividia as folhas das sebentas em quatro partes e fazia, numa torrente criativa, incipientes bandas desenhadas. Outras vezes, certamente influenciada pelas ilustrações de Gustavo Doré que vinham no livro "O Inferno" de Dante, desenhava demónios com cornos. "Mal sabia ler e não me cansava de admirar essas gravuras. Diabos, assuntos relacionados com a Idade Média e a Inquisição sempre mexeram comigo. Tenho uma certa inclinação para o misticismo", confessa. Nunca teve dúvidas, sempre soube o que queria ser na vida quando crescesse. A arte era encarada quase como uma herança, uma predisposição genética, o pendor para o desenho já indiciava um futuro artístico. Depois de terminar o secundário no liceu Filipa de Lencastre, matricula-se na Escola Superior das Belas Artes onde se cruza, entre outros colegas, com Eduardo Nery, Dorita Castelo Branco, Jorge Martins e Manuel Baptista, actualmente figuras destacadas no domínio das artes plásticas. A pintura foi a primeira escolha, mas acabaria por optar pelo curso de escultura que concluiu em 1962.
Na escola, onde vigorava um ensino alheado do que se estava a passar ao nível internacional, não conquistou a simpatia dos professores, na maioria afectos ao regime vigente, que lhe reprovavam a faceta contestatária e as opiniões de natureza política. Naquele ambiente asfixiante e bafiento só lhe agradava a postura do mestre Martins Correia que "era um indivíduo espectacular como humanista e docente". No quarto ano, graças a uma bolsa da Academia Nacional das Belas Artes, deslocou-se a Leiria integrada no grupo de finalistas que, durante as férias, fizeram uma exposição no posto de Turismo onde vendeu uma peça por um conto de reis. Foi num atelier improvisado na antiga sede da Mocidade Portuguesa que transpôs, para um tamanho natural, a peça requerida na apresentação da tese que lhe facultaria o acesso ao quinto ano. "Exigiam 14 de nota, fiz aquilo a pulso com a ajuda dos colegas. Nem eu nem o Rogério Machado tínhamos cinco contos para pagar ao Faiunça que trabalhava com o António Duarte e outros escultores do regime salazarista. Os nossos queridos mestres, que veraneavam nas suas casas de S. Pedro de Moel, deram-nos um 13. A minha peça era tão boa ou tão má que um professor de arquitectura da Escola me pediu que lha oferecesse", conta.
Os apertos financeiros da família Mesquita, agravados com o nascimento do irmão Raul, subsistiam. Através de um amiga, conseguiu um emprego de designer na IBM portuguesa. Ainda chegou a colaborar no atelier de Carlos Tojal, antes de viajar para Luanda em 1965. Já casada e com um filho de meses acompanhou o marido, o arquitecto José Fava, que tinha sido mobilizado no auge do combate da guerra colonial. Ali, num golpe de sorte, depressa alcançou uma certa estabilidade profissional. "O João Raposo Magalhães, um homem invulgar, encarregou-me da concepção dos murais e dos balcões em cerâmica das agências do Banco Pinto & Sotto Mayor que estava a expandir-se em Angola. Concebi também um painel e uma escultura para o Banco de Crédito Comercial e Industrial, no Lobito, e o Baptistério da Igreja de Novo Redondo", informa. No primeiro ano de África sofreu imenso, sentia-se incomodada com as baratas, não suportava aquela bicharada infernal. Por azar foi picada pela mosca bicheira que a ia comendo viva. "Quando pica deixa uma larva debaixo da pele que se alimenta da nossa carne. Só pode ser tirada depois da lagarta atingir um centímetros. Então, tapa-se o buraco com vaselina e ela vem à superfície para respirar, nessa altura sai por si ou tem de ser extraída pelo médico. Tive três que saíram naturalmente e houve mais quatro que foram lancetadas".
A pouco e pouco, foi-se apaixonando por África que lhe tomou os cinco sentidos e, posteriormente, se transformou numa motivação artística. Eram as cores, os verdes de tudo o que era verde, os tons acastanhados a contrastar com a claridade translúcida do ar, o odor da terra molhada, o garrido das roupas femininas, o cinzento chumbo do céu a anunciar trovoadas assustadoras, os cheiros intensos, os amplos horizontes, os sabores do mozungué e da moamba que são os pratos típicos da gastronomia angolana. No mercado de São Paulo costumava comprar peixe fresco e quitaba que era uma pasta de amendoim moído com gindungo cortada aos quadradinhos e usada como aperitivo. Trazia o seu rutilante mini branco com os estofos vermelhos carregado de géneros. "Comprei esse carro, que era óptimo para as curvas, na Inglaterra. Fiz a rodagem desde Londres até Lisboa e depois enfiei-o no barco para Luanda", sublinha. Como lhe parecia bela a cidade, como a vida transcorria serena. Os hotéis da marginal, o ténis, o clube dos armadores de pesca, a vasta extensão líquida do mar, os estabelecimentos da Baixa recheados de produtos vindos da metrópole, os bailes a que tinham acesso os altos funcionários administrativos, os oficiais superiores do exército e os membros das profissões liberais. Nas mercearias finas da Baixa não faltava o bacalhau, a manteiga da Madeira, o fino azeite e nem sequer os pastéis de nata. Fragmento a fragmento, reconstitui esse mundo fugidio que teima em não esquecer.
Recorda as vendedoras que fumavam com a ponta acesa do cigarro virada para dentro da boca. As famosas Kitandeiras que aprenderam a escapar aos esquemas tradicionais e que desempenham ainda hoje um papel fundamental no tecido comercial de toda a África. Num registo quase mágico, Clotilde Fava permanece fiel a uma representação em que a figura feminina surge como guardadora da tradição, da sabedoria, sem indagar das suas vulnerabilidades nem das incertezas do seu destino. Os machibombos abarrotados de gente humilde e de galinhas, as farras ou "rabitas" que duravam de sexta-feira até à madrugada de domingo e onde o merengue fazia os corpos quentes e suados vibrarem. Sempre as pessoas, as laboriosas mulheres, as cenas e os gestos, na linha da frente. Num rebuscar de memórias que não se apagam. Lembranças poetizadas pelo tempo e a distância. Não pinta Angola como o Malangatana, é mais o olhar afectivo do passeante, de quem está de fora a aspirar um perfume étnico, a absorver uma energia visual.
A Luanda da actualidade está irreconhecível, proliferaram os musseques, a que Luandino Vieira chamava "a fronteira do asfalto", aludindo à fronteira que dividia dois mundos e que Pepetela, numa definição menos condescendente, chama mundo de miséria sem condições de higiene nem de habitabilidade. Quantos anos já lá vão? Trinta? O tempo passa a voar. Parece que foi ontem. Após uma década, regressou com algumas mágoas no contingente dos "retornados" que voltaram de mãos a abanar e foram obrigados a recomeçar do nada. Os filhos, a casa e as aulas de educação visual numa escola do ensino secundário impedem-na de se dedicar por inteiro à pintura que, para ela, se tornou um imperativo. Mas lá ia dando um jeito. Depois da primeira exposição na galeria Quattro surgiram alguns convites. Com a diferença de dois dias, inaugura uma exposição no Museu de Sintra e outra no Museu da Água. "Tive o privilégio de conhecer a Natália Correia e o seu círculo de amigos, o que me permitiu sair do casulo", diz.
Em 1997 visita Cabo Verde, na qualidade de turista. Sucumbiu à circunstância e ao romantismo de se encontrar no mesmo continente da terra onde viveu dias inolvidáveis. A descoberta deste pedaço de África inspira-lhe meia dúzia de exposições. Seduzem-na as casas baixas de tipo algarvio com janelas elaboradas, a paisagem agreste e dura, a simpatia acolhedora da população. Fixa-se nas cumplicidades das mulheres com os animais domésticos, nas cabras que vivem em redor das casas e que, nas zonas mais áridas, devoram tudo até mesmo o plástico. São cabras estranhas, dotadas de cornos enormes e enrolados, evocando as palancas que voltaram timidamente a aparecer depois da paz se instalar em Angola. Cabras que, apoiadas nas patas traseiras, comem as folhas das árvores incrivelmente curvadas. Sobranceando a vegetação franzina, impõe-se o dragoeiro, uma árvore única com uma copa que parece um chapéu-de-chuva. Impressionada com a Ilha do Fogo, fala do contraste entre a areia preta e a transparência verde azulínea do mar. "Onde a lava parou, deixando um rasto cor de antracite, há uma explosão de verde", descreve. Na paisagem extremada, que classifica de lunar, predominam as formas retorcidas, nitidamente plásticas. Alude ainda ao facto, um tanto surpreendente, de alguns habitantes da ilha ostentarem cabelos louros e olhos azuis. Cabo Verde foi, em tempos idos, um entreposto de carvão explorado pelos ingleses, o que explica a mestiçagem tão patente. O exotismo dos traços fisionómicos é fruto de entrelaçamentos sucessivos, da mistura de negros com malaios, portugueses e ingleses resultou estonteantes belezas.
O olhar da artista foca as mulheres que se dedicam à venda nos mercados, à labuta da agricultura ou à apanha de calhaus rolados nas praias. Enchem os alguidares de pedras e vendem-nas nas estradas aos camionistas que estão ao serviço da construção civil. São elas que cultivam penosamente o milho que é a base da cachupa. Numa das narrativas pictóricas de Clotilde Fava vemos mulheres e crianças junto dos fontanários no interior das ilhas. Conversam, trocam confidências e vão embora com os bidons amarelos de plástico cheios de água que burros raquíticos transportam. Os cachos de bananas, os galos vermelhos de crista eriçada, os peixes de olhos humanizados, todos estes elementos derramados na tela emanam uma força telúrica. Cabo Verde, território de uma memória original, das alegrias carnais e doces, dos acordes musicais onde o violino e o trompete se entendem às mil maravilhas.
Os olhares tristes e baços das mulheres iluminam-se ao ritmo das batucadas, das coladeras que as impelem para um bailado de pés descalços. O sangue aquece quando as mãos batem na "tchabeta" e produzem um som que contado não é credível. Na dança, o ritmo dissemina-se pelos corpos como uma febre, a sensualidade escaldante dos requebros das cintura e do menear das ancas solta-se como só as africanas sabem fazer. Nas cantigas em crioulo sobre as dificuldades da vida, as infidelidades dos maridos, as canseiras com os filhos, tudo o que as mornas dizem, afloram sentimentos. Clotilde Fava ama Cabo Verde. Comer uma posta de atum fresco ligeiramente passada nas brasas e beber uns goles de grogue, a aguardente destilada da cana do açúcar, não lhe tolda a lucidez nem a impede de mergulhar directamente na pureza das fontes, numa infinita tentação de se perder na agitação dos mercados, no fervilhar indistinto de vidas humanas e animais. Material que, ao fim e ao cabo, está na base dos fios condutores das várias fases da sua obra.
Desde os anos 90 que a obra da artista corresponde aos mesmos impulsos, a um contexto de intimidade com África. Um espaço de enlevos, enredos, solilóquios, devaneios e uma pitada de melancolia que na tela se amplifica. A sua pintura ilustra o encontro de duas civilizações, de duas culturas. Uma linguagem plástica de grande liberdade e vitalismo ao nível das formas e das cores estridentes que utiliza. A figura humana constitui o núcleo da sua poética e pesquisa formal, evocando a composição antropomórfica das sociedades primitivas e associando-a aos animais. Sempre mulheres de formas rotundas, olhos amarelados a lembrar gatas, mulheres que lutam sem desistência. Uma luz brilhante anima cenários de convívio ou de amoroso diálogo entre mulheres e animais, a roçar um surrealismo leve. África é na pintura de Clotilde Fava o que a Rússia foi para Chagall, o seu pintor de eleição. As figuras que pinta partem do dia-a-dia, encontrou-as por lá a vaguear. É a inocência do olhar primordial que procura. Cada pintura é, para ela, uma história, uma ficção e, ao mesmo tempo, uma fotografia da realidade. O resto fica por conta da emoção e do mistério. As suas pinturas que parecem capturar tal como a fotografia instantes da vida, registam experiências visuais e humanas.
Os homens estão normalmente ausentes da pintura de Clotilde Fava, aparecem mascarados nas cenas do Carnaval do Mindelo. Rostos pintados com farinha e lábios borrados de vermelho, assemelham-se a palhaços com um não sei quê de patético. Gravou a figura de um homem vestido de cetim azul com chapéu alto e de um outro com a máscara do "Grito" de Munch, a preto e branco, o que demonstra a influência e o poder das imagens televisivas. "As mulheres não participam, ficam à janela a ver passar o cortejo. As pessoas divertem-se com ordem, nunca assisti a nenhum desmando. O cortejo de terça-feira dura até de madrugada e, no dia seguinte, as ruas estão impecavelmente limpas. Talvez inconscientemente substituo os homens por bichos", comenta. Enquanto, os homens aparecem num papel subalterno e desprovido de alma, o olhar delas põe problemas, interrogações. Mulheres fincadas na terra como árvores robustas a que a maternidade confere um enorme poder. Mulheres que estabelecem laços com os animais, mas que quando é preciso degolam, num corte seco, a cabeça do galo que pode ir parar à panela ou ser utilizado na feitiçaria.
Em 1998, no Ano Internacional dos Oceanos, apresentou na Mãe de Água um exposição sobre o reino fantástico do fundo do mar. No silencioso mundo submarino achou uma aproximação ao universo dos sonhos. No apelo ao imaginário, veio à baila um episódio que viveu em Luanda. "Numa das nossas pescarias vi um peixe estranho a circular em redor do barco. Parámos o motor. Era um peixe-lua com as barbatanas na vertical. Estiquei o braço e fiz-lhe uma festa na cabeça, inesperadamente desapareceu. Nos oceanos há peixes meigos e amigáveis", relata. Peixes esquisitos como as jamantas que andavam aos pares, macho e fêmea juntos. Além das baleias pretas e brancas, havia os dourados com escamas em tons de laranja, vermelho, amarelo, um perfeito arco-íris. Ilusões que a imagem tece entre olhar e o olhar. Fenómenos ópticos bizarros, porque fora de água eram cinzentos tal como os outros peixes. Num apontamento mais comezinho, davam uns deliciosos filetes.
Quando passeava num mangal junto ao Morro dos Veados, entre Luanda e a barra do rio Kuanza, viu sair da água uma piton que quase a hipnotizou. Metros e metros de cobra a distenderem-se, uma imagem que levou para a série dos oceanos. Não sentiu medo. Adora répteis, aliás gosta de todos os animais com excepção das aranhas que lhe bolem com os nervos. Já lhe passou pela cabeça a hipótese de pintar insectos. É um espírito curioso, implicado no que a natureza possui de mais autêntico e selvagem.
Tenta abrir clareiras, sinais de esperança num mundo em dissolução. É daquelas pessoas que não olha à volta com um encolher de ombros. Para exorcizar o ódio que despoleta as guerras, para assinalar que a claridade sobrevinha à escuridão, apeteceu-lhe encetar uma fase perfumada pelo hálito das flores. "Todos os peixes e todas as flores têm um nome", disse Sofia de Mello Breyner. Anturios, hibiscos, orquídeas e jarros são os nomes das flores que Clotilde Fava pintou. Não chegou a pintar miosótis ou "não te esqueças", outra forma de os nomear, nem girassóis que tanto aprecia. "As flores reproduzem-se, deixam as sementes, por vezes renascem com mais de uma floração anual. Não peguei no lado decorativo, nada disso. Interessou-me mais o aspecto da regeneração". Foi com insegurança que trilhou um caminho diferente, mais a resvalar para a abstracção. "Estava habituada a pintar as minhas mulheres, as minhas cabras, os meus peixes, os meus monstros marinhos. As flores foram um desafio mais árduo, até mesmo em termos de resolução pictórica", acrescenta.
Flores que sugerem sexos masculinos e femininos, portanto com conotações eróticas, a remeter para a eterna fusão do yin e do yang que é o motor da dinâmica criativa da natureza. "Andei três anos a ver flores, a espiolhar-lhe os órgãos sexuais com uma lente à maneira dos cientistas". Flores, algumas provavelmente carnívoras, mas que nunca são as flores do mal. Traduzem, na opinião da pintora, uma ilusão de harmonia que a nossa época já não sustenta. Geórgia O`Keefe pintou mais de 200 quadros com flores, o lírio era o seu emblema. Clotilde Fava preferiu pintar flores mais esquisitas e inquietantes. "Inconscientemente vamos buscar coisas que vemos nos museus e nos livros de pintura", remata.
Repetindo: Chagall revelou-lhe a transcendência da arte. Nunca põe títulos nas pinturas e uma das palavras que melhor lhe soam é nostalgia.